Plano Chinês para Derrubar o Sistema Financeiro Americano

A China pode mesmo derrubar o sistema financeiro dos EUA? Desmascaramos a narrativa do “Plano Yuan” com dados, teoria econômica e fatos incontestáveis.

PhD Bertoncello

4/22/202510 min ler

Relatos recentes sugerem que Pequim teria elaborado um plano estratégico de cinco etapas para desestabilizar os Estados Unidos. O primeiro ponto, aqui, é entender o que representa a China: entre as ditaduras do mundo, é a mais rica e a mais avançada tecnologicamente. Dito isso, “vazou-se” esse plano, assim como já ocorreram vazamentos no TikTok, onde fabricantes chineses, falando inglês fluente, denunciaram marcas europeias de bolsas.

Feita essa reflexão, retomemos o tema: um suposto plano secreto da China para colapsar o sistema financeiro americano e provocar uma crise global veio à tona. Alegadamente vazado por um certo "Professor Yuan", o esquema envolveria a venda coordenada de títulos da dívida pública dos EUA e ações de empresas listadas nas bolsas americanas, com o objetivo de desestabilizar a economia global. Contudo, este artigo desmascara essa narrativa sensacionalista, demonstrando que ela não se sustenta diante dos fatos, com base em conceitos acadêmicos e dados provenientes de relatórios oficiais de governos e instituições internacionais.

Assim, veremos que as estratégias geopolíticas e as tensões entre Estados Unidos e China descritas nesse relatório constroem cenários improváveis, economicamente irracionais e carentes de evidências confiáveis. Trata-se, na verdade, mais de uma guerra de informação, reflexo das crescentes tensões sino-americanas, do que de uma ameaça concreta (MISHKIN, 2019; NAUGHTON, 2021). Antes de tomarmos como verdade as estratégias atribuídas à China, é necessário voltarmos aos fatos.

Para compreender por que a suposta ameaça chinesa de desestabilizar o sistema financeiro americano é uma narrativa infundada — seja fruto de desinformação deliberada ou de desconhecimento sobre o funcionamento dos mercados — é essencial analisar conceitos econômicos fundamentais que sustentariam as alegações do chamado “Plano Chinês”. Neste artigo, examinaremos: (i) a dívida pública e seus títulos, centrais na discussão sobre estabilidade financeira; (ii) as reservas internacionais, que expressam a capacidade da China de influenciar mercados globais; (iii) o valor de mercado das empresas (equity), supostamente alvo de liquidação coordenada; e (iv) o mercado de crédito e as taxas de juros, que moldam a dinâmica de financiamento e a própria resiliência econômica. Com base em dados confiáveis e teorias econômicas consolidadas, demonstraremos que essa estratégia atribuída à China é não apenas inviável, mas também contraditória aos seus próprios interesses econômicos (BERNANKE; GERTLER, 1995; MANKIW, 2019).

A dívida pública (i) é o resultado da emissão de títulos por um governo para financiar despesas que excedem sua arrecadação. Ela representa o estoque acumulado de déficits fiscais ao longo do tempo, acrescido dos encargos de juros. Diferentemente do que muitos imaginam, possuir dívida pública não é, por si só, um sinal de fraqueza econômica. O impacto dessa dívida depende de quem a detém, da capacidade de pagamento do país e do contexto macroeconômico em que ela é administrada. Normalmente, essas dívidas são emitidas sob a forma de títulos negociáveis — como os Treasuries, nos Estados Unidos, ou os bondssoberanos, na China — que devem ser pagos com juros aos seus credores. Em termos simples, trata-se de um governo que toma empréstimos, por exemplo, para construir infraestrutura ou financiar políticas sociais; esses compromissos se acumulam e compõem a dívida pública do país. Nos Estados Unidos, a dívida pública atingiu US$ 36,22 trilhões em janeiro de 2025, equivalente a 124% do PIB. Ela é composta por dois grandes blocos: a dívida detida pelo público, no valor de aproximadamente US$ 27 trilhões, que inclui títulos adquiridos por investidores domésticos — como o Federal Reserve, bancos e fundos de pensão — e por estrangeiros, que detêm cerca de 23% desse montante, o equivalente a US$ 8,51 trilhões, com destaque para a China, que possui US$ 759 bilhões; e a dívida intragovernamental, que soma cerca de US$ 9 trilhões, e é detida por fundos fiduciários do próprio governo, como o da Previdência Social. Essa última parcela caracteriza-se por compromissos de longo prazo e menor impacto direto nos mercados financeiros.

Já a dívida pública da China foi estimada em US$ 16 trilhões em 2024, o que representa cerca de 116% do PIB. Essa dívida é predominantemente interna, composta por duas partes principais: cerca de US$ 4,6 trilhões referentes à dívida do governo central e aproximadamente US$ 11,4 trilhões vinculados aos governos locais, muitas vezes emitidos por meio de veículos especiais de financiamento (LGFVs). Uma parcela significativa dessa dívida está associada à bolha imobiliária chinesa, concentrada em dívidas impagáveis das províncias. Além disso, menos de 5% da dívida do setor imobiliário está nas mãos de investidores estrangeiros — geralmente empreiteiras e fornecedores expostos ao mercado internacional. Essa diferença estrutural é fundamental: enquanto os Estados Unidos possuem elevada exposição externa, a China mantém controle interno sobre sua dívida, o que torna inverossímil a hipótese de um colapso causado por movimentos unilaterais de desinvestimento estrangeiro (FUNDO MONETÁRIO INTERNACIONAL, 2024; MANKIW, 2019).

As reservas internacionais (ii) são ativos externos mantidos por bancos centrais para garantir liquidez, estabilizar a moeda, assegurar pagamentos externos e transmitir confiança ao mercado. Compõem-se de moedas fortes (como dólar, euro e iene), títulos públicos líquidos, direitos especiais de saque (SDRs) do FMI e reservas em ouro, que têm papel estratégico. Podem ser vistas como uma “poupança de emergência” usada para proteger a moeda nacional ou financiar importações em momentos de crise.

A China detém as maiores reservas internacionais do mundo, totalizando US$ 3,24 trilhões em abril de 2025. Desse montante, cerca de US$ 209,6 bilhões estão em ouro, o equivalente a 73,7 milhões de onças troy (cerca de 2.293 toneladas métricas). O restante está distribuído principalmente em títulos do Tesouro americano, moedas fortes, SDRs e outros ativos líquidos. Essas reservas dão lastro ao yuan, reduzem riscos externos e sustentam a estabilidade macroeconômica. No entanto, seu uso como arma geopolítica, por exemplo, vender títulos americanos, é limitado: uma liquidação abrupta derrubaria os preços dos próprios ativos ainda em posse da China, gerando prejuízos bilionários ao seu sistema financeiro.

Já os Estados Unidos, com reservas bem menores, totalizavam US$ 46,24 bilhões em janeiro de 2025, dos quais US$ 11,04 bilhões estão em ouro (75% do total, equivalente a 8.133,5 toneladas). Considerando o valor de mercado do ouro em abril de 2025 (cerca de US$ 3.045 por onça), essas reservas equivalem a mais de US$ 780 bilhões. No entanto, seguem contabilizadas pelo Tesouro a preços históricos (US$ 42,22/onça, desde 1973). Os demais US$ 35,2 bilhões estão em moedas estrangeiras, DES e posições no FMI, refletindo a confiança global no dólar como reserva. A disparidade entre as reservas chinesas, diversificadas, e as americanas, concentradas em ouro, revela estratégias distintas: a China teria pouco incentivo para desestabilizar os EUA, pois isso comprometeria suas próprias reservas e ainda elevaria o valor do ouro — onde os EUA possuem reservas quatro vezes mais valiosas (CEIC DATA, 2025; MISHKIN, 2019).

Outro pilar do sistema financeiro global é o mercado de equity (iii), ou capital acionário, que representa a propriedade em empresas por meio da posse de ações. Ao comprar ações, investidores tornam-se sócios e participam, direta ou indiretamente, dos lucros e prejuízos. Diferente dos títulos de dívida, que têm remuneração fixa e vencimento, os ativos de equity envolvem mais risco e valorização de longo prazo. O mercado acionário funciona, assim, como um termômetro da vitalidade econômica, da inovação e da confiança no futuro das empresas.

Em 2025, a capitalização total das bolsas americanas (NYSE e Nasdaq) é estimada em US$ 52 trilhões, após uma queda de US$ 10 trilhões no início do ano, causada por tarifas comerciais e volatilidade. Cerca de 85% a 90% das empresas listadas são de origem americana, incluindo gigantes como Apple, Microsoft e Amazon, que lideram o índice S&P 500. A China representa apenas 2% a 3% das listagens, com empresas como Alibaba e NIO, muitas, via ADRs, totalizando 286 companhias com valor agregado de US$ 1,1 trilhão. O Brasil responde por menos de 1%, com nomes como Nubank e Vale. Outros países — como Canadá (1% a 2%), Reino Unido (1%) e Japão (cerca de 1%) — têm participação limitada, refletindo a dominância americana. Essa concentração mostra que uma venda coordenada de ações pela China teria impacto marginal, dado seu pequeno peso no mercado acionário dos EUA (SIBLIS RESEARCH, 2025; STATISTA, 2024).

Essa estrutura diversificada e internacionalizada torna o mercado acionário dos Estados Unidos não apenas um termômetro da economia americana, mas também um centro financeiro global. Investidores do mundo todo buscam ali liquidez, transparência, governança e segurança jurídica — atributos difíceis de replicar em outras jurisdições, como a China, onde o controle estatal e a opacidade institucional ainda limitam a integração com os fluxos globais de capital.

Do ponto de vista econômico, crédito (iv) é a transferência de poder de compra do presente para o futuro, com base na confiança de que o tomador cumprirá o pagamento acrescido de juros. Como destaca Schumpeter (1939), o crédito é o “meio pelo qual o empreendedor realiza novas combinações produtivas”, sendo a base do dinamismo capitalista. Nos Estados Unidos, o crédito é abundante, diversificado e sustentado por um sistema jurídico transparente, com amplo acesso a dados, proteção ao investidor, regulação eficiente e uma moeda de referência global. Já na China, embora o volume total de crédito seja elevado, ele é desigualmente distribuído e controlado pelo Estado. Pequenas e médias empresas enfrentam dificuldades para obter financiamento formal, enquanto grandes bancos priorizam projetos alinhados a interesses políticos. Essa assimetria reduz a eficiência na alocação de recursos e limita a valorização sustentável das empresas chinesas.

O valor de uma empresa no mercado, expresso por sua capitalização de mercado (market cap), está diretamente ligado à sua capacidade de gerar lucros futuros e, sobretudo, de acessar crédito com eficiência para alavancar crescimento. Grande parte da expansão empresarial depende de investimentos financiados por capital de terceiros que, se bem aplicados, ampliam a produtividade e o retorno sobre o patrimônio líquido (ROE). Assim, o valor de uma ação reflete as expectativas de lucro ajustadas pela capacidade de uso estratégico do crédito no longo prazo. Ataques especulativos podem causar choques momentâneos, mas seus efeitos costumam ser passageiros.

As taxas de juros, definidas como o custo do crédito ou a remuneração pelo uso do capital, exercem papel central na economia: equilibram oferta e demanda por recursos, influenciam investimentos, consumo e inflação. Podem ser vistas como o preço pago para tomar dinheiro emprestado ou recebido ao emprestá-lo. Pela teoria da preferência pela liquidez, Keynes (1936) afirma que os juros refletem a disposição dos agentes em renunciar à liquidez. Já Fisher (1930) formula a equação clássica: a taxa nominal é a soma da taxa real e da inflação esperada (i = r + πe).

Nos Estados Unidos, as taxas de juros são amplamente determinadas pelo mercado e ajustadas pelo Federal Reserve, por meio da Fed Funds Rate — em torno de 4,5% em 2025. Essa liberdade permite ajustes rápidos: aumentos controlam a inflação; reduções estimulam o crédito, promovendo estabilidade. Já na China, o Banco Popular da China (PBoC) mantém controle rígido sobre taxas como a Loan Prime Rate (3,35% para 1 ano em 2024), direcionando o crédito a setores estatais. Esse modelo gera uma espécie de “doença monetária”, especialmente no setor imobiliário: recursos são alocados de forma ineficiente, com excesso de crédito a incorporadoras como a Evergrande, resultando em bolhas e inadimplência. A rigidez dos juros impede ajustes eficazes, agravando os desequilíbrios. Essa diferença estrutural limita a capacidade da China de desestabilizar os EUA, cuja flexibilidade monetária atua como amortecedor frente a choques financeiros (CHEN; HE; LIU, 2020; FISHER, 1930; KEYNES, 1936; TAYLOR, 1993).

Resumindo

A China detém aproximadamente US$ 759 bilhões em títulos da dívida americana, dentro de um universo de US$ 36,22 trilhões — ou seja, cerca de 2% do total. Naturalmente, uma venda integral causaria desvalorização do dólar e valorização do ouro. Já vimos que os Estados Unidos possuem, em valores de mercado, aproximadamente US$ 780 bilhões em reservas de ouro. No entanto, a ausência de reservas internacionais dificulta a negociação internacional, especialmente para importações e, no caso chinês, de bens essenciais, como alimentos.

O capital acionário americano está ligado não apenas ao dólar ou aos Estados Unidos, mas principalmente ao ROE que grandes empresas apresentam em um ambiente empresarial livre e dinâmico. Assim, uma venda massiva de equitypoderia, paradoxalmente, atrair ainda mais capital para os Estados Unidos, já que investidores não chineses veriam ali uma oportunidade de ganhos no médio e longo prazo.

Mas, imaginando que esse movimento realmente ocorra e que Pequim deseje destruir valor, a consequência mais imediata seria o fim do crédito internacional à China. E aqui não nos referimos a instituições como o FMI ou o Banco Mundial, mas sim aos atores que realmente importam: as grandes empresas e seus investimentos diretos na produção. A perda dessa confiança poderia levar a uma recessão profunda na China.

Em última instância, suponhamos um cenário extremo em que Pequim decida se autofinanciar com juros baixos e sem reservas internacionais. Teríamos, então, uma impressão de dinheiro ainda mais intensa do que a que já ocorre atualmente. Isso levaria a uma inflação aguda, sobretudo nos alimentos, além de uma forte desvalorização do yuan. A consequência imediata seria uma instabilidade social crescente, com movimentos internos — e também incentivados por agentes externos (não sejamos ingênuos) —, provocando mudanças profundas ainda sem direção definida no atual cenário chinês.

Em síntese, a China está presa ao sistema monetário internacional — e não sairá dele, pois toda a sua economia interna entraria em colapso. Por mais estranho que possa parecer, aposto em um aumento das compras de ativos externos por parte dos agentes chineses, justamente porque, com as tarifas impostas, é provável que vejamos em breve uma nova desvalorização da moeda chinesa.

Referências

BERNANKE, B. S.; GERTLER, M. Inside the black box: the credit channel of monetary policy transmission. Journal of Economic Perspectives, v. 9, n. 4, p. 27-48, 1995. DOI: 10.1257/jep.9.4.27.

CEIC DATA. China international reserves. 2025. Disponível em: https://www.ceicdata.com. Acesso em: 21 abr. 2025.

CHEN, Z.; HE, Z.; LIU, C. The financing of local government in China: stimulus loan wanes and shadow banking waxes. Journal of Financial Economics, v. 137, n. 1, p. 42-71, 2020. DOI: 10.1016/j.jfineco.2019.07.009.

FISHER, I. The theory of interest. New York: Macmillan, 1930.

FUNDO MONETÁRIO INTERNACIONAL. World Economic Outlook. Washington, DC, 2024. Disponível em: https://www.imf.org. Acesso em: 21 abr. 2025.

KEYNES, J. M. The general theory of employment, interest, and money. London: Macmillan, 1936.

MANKIW, N. G. Macroeconomics. 10. ed. New York: Worth Publishers, 2019.

MISHKIN, F. S. The economics of money, banking, and financial markets. 12. ed. Boston: Pearson, 2019.

NAUGHTON, B. The Chinese economy: adaptation and growth. 2. ed. Cambridge, MA: MIT Press, 2021.

SCHUMPETER, Joseph A. Business Cycles: A Theoretical, Historical, and Statistical Analysis of the Capitalist Process. New York: McGraw-Hill, 1939. 2 v.

SIBLIS RESEARCH. Total Market Capitalization of the U.S. Stock Markets. 2025. Disponível em: https://siblisresearch.com. Acesso em: 21 abr. 2025.

STATISTA. Distribution of listed companies in the U.S. stock exchanges by country of origin. 2024. Disponível em: https://www.statista.com. Acesso em: 21 abr. 2025.

TAYLOR, J. B. Discretion versus policy rules in practice. Carnegie-Rochester Conference Series on Public Policy, v. 39, p. 195-214, 1993. DOI: 10.1016/0167-2231(93)90009-L.